A mancha do Photoshop



Ontem de tarde passei cerca de meia hora a tentar apagar uma mancha numa layer do Photoshop. Tinha para cima de 200 layers empilhadas, o que até pode parecer muito mas nem é nada. Seleccionava uma e outra sem remédio. Depois de ter tentado todas as soluções e até de ter googlado por mais, sem perceber o que mais poderia fazer para eliminar a mancha, porque não existe grande ciência no assunto, e preparando-me para contornar trabalhosamente o problema, ocorreu-me ir fazer um chá verde que dizem ajudar a prevenir doenças do coração. É que eu estava prestes a ter um ataque de.

Nesse afã me encontrava quando tocaram à campainha. Era a vizinha do 7º andar que vinha rogar o favor de eu lhe dar as boxers castanhas que tinham caído nas minhas cordas, estavam por um fio, sorte era não haver vento. Tenho um acesso de hospitalidade e convido-a para entrar para a cozinha enquanto me estico à janela para apanhar as ditas. E como o bule está mesmo ali a olhar para nós da sua alva beleza sugiro que se me junte no chá verde que descansa.

Ela aceita e vamos para o escritório onde nos sentamos informalmente à mesa onde trabalho, daí a pouco as duas a fazer música com a colher contra a porcelana das chávenas, ela a dissolver dois torrões de açucar, eu apenas a fazer ondas. Insisto que prove as bolachas de aveia integral que entretanto fui buscar para vestir o estômago, saudáveis, digo eu. O ecrã do computador ficara entretanto em modo de economia, negro, mas primo a tecla e faço um enter orgulhoso para lhe mostrar o trabalho. Explico o processo, as ferramentas, elaboro sobre a magia do Photoshop. Ela diz que não percebe nada do assunto, tecnologia, informática, finge que está interessada sem disfarçar. Assim que pressente uma pausa no meu discurso pergunta-me pela receita das bolachas. Concluo, sem espanto, que o meu entusiasmo em relação ao Photoshop não a contagia e a resposta de que as bolachas vieram do Jumbo esgota a conversa. O meu olhar já está de novo cativo na mancha infecta, que não consigo remover.

Não temos muita convivência, eu e esta vizinha. Descemos e subimos no elevador, emprestadei-lhe um limão ou outro, um ovo. No dia em que o rei faz anos traz-me uma fatia de bolo de aniversário, muito enjoativo, e, que me perdoem todas as crianças que passam fome no mundo, que eu nunca consigo terminar. Nunca sequer diz quem é o aniversariante, sempre apressada pois tem a casa infestada de visitas, tão stressada como quando sobe no elevador comigo, de compras nas mãos, ou desce, com os sacos do lixo. Eu também não pergunto. Deus me livre de perguntar e acabar por ser convidada para uma festa de bolos e bebidas hipercalóricas e outros atentados alimentares semelhantes.

Ir lá acima para ver comer -que é muito diferente de comer com os olhos, - ter conversas agri-doces com estranhos, fintar os jovens explicandos a quem ela prepara nas matemáticas, aturar duas crianças hiperativas, as cadelas com o cio, emprestar o meu ombro ao pai dela que está deprimido e não sabe porquê? Ou para aturar o ex- a reviver o casamento falhado, ele que será sempre um amigo do peito para ela, mais a prima ruiva que não deixaria escapar a oportunidade de me tentar recrutar para a Yves-Rocher mais uma vez? Conheço-os todos, não de gingeira mas, isso sim, porque ela me apresentou a toda essa fauna no elevador, esse espaço ingrato de convivência social, - mencionei rever os outros vizinhos todos com quem partilho o elevador de uma assentada e acabar a discutir questões de condomínio? – ou no inescapável hall de entrada.

E depois descer, e decerto com a fatídica fatia de bolo de três camadas num prato, olhar aquela temível flor de açucar vermelha e a folhita de hóstia esverdeada, saber que não vou conseguir comer até final: é demasiado para engolir de bom grado. E a cereja no topo, ter de comprar um inimaginável presente.

Há muitos anos que deixei de praticar intimidades com a vizinhança assim como nunca durmo com colegas de trabalho. Regras são regras. Mas nem sempre nem nunca. E fosse porque me sentisse vencida pela insolência daquela mancha que se ria para mim no ecrã ou porque cansada de tanta higiene mental no que toca a interações sociais, cedi a uma momento de fraqueza e partilhei a minha frustração: apontei-lhe, inconsolada, a mancha. A minha vizinha, que nada percebe de computadores e Photoshop, levou mecanicamente as mãos ao peito e subiu os óculos pendurados do pescoço até à cana do nariz. Com olhar médico aproximou o rosto do computador que examinou por breves instantes. Sem hesitar molhou o dedo indicador no chá verde e esfregou-o contra o polegar. Apenas me disse: Posso? E dito isto moveu a polpa do dedo sapudo até à superfície do ecrã onde descreveu pequenos círculos suaves.

Alarmada pelo vermelho escarlate da sua bem desenhada unha de gel abri muito os olhos porque não tive tempo de abrir a boca e impedi-la. A minha descompostura facial ficou-se por isso porque a mancha desapareceu como que por magia, digo-vos que até parecia Photoshop! Ensaiei uma piadola com o Quincy Magoo não para a fazer rir, mas para minorar o meu desconforto, e levei a chávena de chá à boca, terminando a bebida de um trago. Ela não sabia quem era o velhote pitosga dos desenhos animados.

Estávamos num impasse, eu agora titubeante que nem o Porky Pig, entre o agradecido e o embaraçado, a chávena dela quase cheia sobre a mesa dizia-me que o tempo sobejava para o muito que não havia a dizer. E então ela exclamou o estridente, costumeiro e hoje providencial, vizinha estou cheia de pressa, e levantou-se de um salto. Ainda tinha a louça do almoço por meter na máquina, disse, graças a deus, pensei eu. Que nódoa.

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