Status do dia: em maré de azar


Um céu tão azul como o mar, um sol tão dourado como a areia, uma brisa morna. Toca a aproveitar que isto já são os saldos do verão, os minutos finais do prolongamento. Pelos meus cálculos ia estar um dia de praia à maneira. À chegada topei com um insólito. Um homem tisnado aprontava-se para jogar golfe no areal. Em tronco nú e calças caqui, de cócoras, segurava o taco numa mão e com a outra remexia a areia onde havia pelo menos uma dúzia de bolas. Indo pela passadeira fora, ultrapassei-o, disfarçando a perplexidade. Só com vergonha é que não tirei uma foto para não dizerem que eu invento estas coisas. O medo coibiu-me. E se ele vinha atrás de mim com o Sandwedge? A gente nunca sabe! Uns metros adiante olhei para trás e já todo ele era swing. 
A passadeira de madeira leva-nos da marginal até metade do percurso até ao mar. Subitamente termina. Ontem o vento soprou fortemente e varreu o areal de forma impecável deixando-o liso como papel. Inscritos na superfície da areia, dali seguiam alguns rastos de pessoas. É como uma prancha dos navio por onde faziam os marinheiros prevaricadores caminhar para a morte. Ainda ninguém morreu por se atirar aos restantes metros de areia sem a ajuda daquela muleta mas a pressa com que retiram as passadeiras móveis diz tudo da forma como se encara a época balnear à boca do Mondego.

Na praia gosto de manter as coisas simples. Não dou voltas salgadas à procura do sítio ideal para estender a toalha, e, em especial quando a praia é quase toda minha, eu sigo em linha recta e se ninguém tiver ocupado o chão, ali, naquele ponto o mais pertinho da água que for possível, faço daquele metro e meio o meu divã sem hesitar. O mar de Setembro tem estado algo bruto e já cavou um desnível significativo na areia. Aí sentados temos até a impressão de estar num primeiro balcão de uma sala de espectáculos. O filme estava a agradar mas acabei por me espreguiçar na toalha e já estava assim há um bom pedaço de moleza quando uma onda mais atrevida galgou por ali fora e me veio dar um toque. Cutucar, como dizem no Brasil. A maré estava a encher mas confiei. Pelos meus cáculos nem de tarde ela chegaria ali mas de repente fui rodeada por água fresca e borbulhante! Apenas tive tempo de num gesto rápido atirar o saco para longe. Levantei-me num salto. Ali estavam os óculos, além o protector solar, uma sandália para cada lado e a toalha completamente encharcada. As minhas mamas também tinham saltado para fora do bikini cai-cai. À minha volta as pessoas riam-se e lá ao fundo vislumbrei outra vítima de similar imprevisto. Ri-me também. E comecei a torcer a toalha que pesava no mínimo 5 quilos. Força de braços não é o meu forte e teria ficado grata a algum dos cavalheiros presentes por uma mão. Só que no presente século os homens tomaram consciência de que ser cavalheiro é ser machista e então nenhum se chega à frente. Ó amores! Sou sexo fraco, fracote, fraquíssimo até, se isso ajudar a que alguém me venha ajudar a espremer a toalha, sim? Pouco cavalheiros e nada gentis, eu torcia, torcia enquanto via os mais prevenidos pegaram nas suas tralhas balneares e mudarem-se para alguns metros acima. 


Depois de ter transformado o areal na "aldeia da roupa branca", impedida de me voltar a deitar na toalha molhada que, pelos meus cálculos, estava agora bem afastada do mar, encaminhei-me para a orla inclinada. De lá vinha uma senhora queixosa que tinha sido atirada ao chão pela ondaça maluca e que também se apressou a transplantar o guarda-sol para zona segura. Mergulhámos na conversa, duas estranhas à beira do mar, o sol a aquecer-nos as costas e as ondas a fazerem tropelias a nossos pés. Não falámos daquele video do homem chinês que foi atingido duas vezes por um raio no mesmo dia e que sobreviveu mas isso passou-me pela cabeça já não sei em que momento da manhã. E a razão de tal lembrança foi apenas porque esta façanha do mar que vos acabo de contar se repetiu de novo e com mais água. Desta vez as minhas maminhas não galgaram para fora do bikini cai-cai e a D. Fernanda veio ajudar-me a torcer a toalha que estava longe de mim quando vi a onda ladina a correr pelo areal acima. A vossa Hilda lançou-se que nem um Bolt na direcção dela mas em vão. A água avançou e desapareceu sob os meus pés. E se da primeira vez esta gracinha da Natureza até tinha dado vontade de rir desta outra nem por isso. Actualização de status para o dia de hoje no Facebook: “em maré de azar”. 

Porque era hora do almoço o estômago pedia reforço e não havia forma da roupa enxugar rapidamente. Em desespero espalmei a tshirt em cima do guarda-sol da D. Fernanda: pelos meus cálculos sempre ficava mais perto do sol, talvez a evaporação fosse assim mais rápida. Ao contacto com o algodão imaginei a minha pele envolvida por um burkini molhado. Bah! Se há excesso de água na roupa e se a roupa não está na água isso só pode ter um nome: acidente. Com a minha cabeça a passear por culturas exóticas veio-me felizmente à ideia a loja chinesa em frente à praia. Passaria por lá e compraria uma tshirt bem sequinha feita com mão de obra escrava algures em Guangdong. Pelos meus cálculos tinha dinheiro para isso. Na praia eu mantenho as coisas simples: algumas moedas para uma emergência, não mais. Na marginal despedi-me da D. Fernanda e transformei-me numa relutante Miss Tshirt Molhada Figueira da Foz. Atravessei o jardim apressadamente e entrei na loja chinesa. Atrás do balcão encontrei o dono a quem expliquei a minha necessidade e o meu problema: queria comprar uma tshirt mas só tinha 2.50 euros. “Não tem”,”Não tem”, repetia ele. “Esta está encharcada. Fui apanhada por uma onda.” Ele olhou para mim desconfiado. Estes chineses são tão complicados! Mas, de facto, ver para crer não se aplicava aqui. O diabo da tshirt não aparentava estar molhada! “Não tem”, “Não tem”. Não tem? Não tem nada balato senhole? Não acledito! Amanhã eu venho cá pagale o que falta. Não posso ile assim pla casa. “Pode ser.” Pode ser! Estes chineses são um amor. E lá fui buscar uma tshirt aos cabides. Corri para o vestiário mais contente do que se estivesse numa loja Prada. O meu saco era um peso de algodão e turco molhados e salpicados de areia. Quando virei o porta-moedas sobre o balcão de vidro, água e moedas de vários tamanhos e cores espalharam-se ali de forma marota. O homem passou-lhe um pano devagar enquanto me olhava de forma grave. Pelos meus cálculos não acreditou numa palavra da minha história.

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