Os cartoons de Charlie Hebdo dividem opiniões



Em primeiro lugar convém não confundir sátira e insulto, este não passa de uma ofensa acintosa dirigida a alguém, ou seja, uma agressão em si mesma. Não sei quantas vezes já li nas redes “se um cartoonista desenhasse a tua mãezinha em altas cenas com Maomé queria ver como reagias”. E porque razão haveria o cartoonista de desenhar a minha mãe em altas cenas com o profeta?!!, apeteceu-me perguntar. Acham mesmo que o negócio dos cartoonistas é o insulto fácil?! Pode ser o negócio da obscenidade, da provocação, do choque, da afronta, mas nunca o da facilidade. Já agora, mãe há só uma. Não será válido dizer que possa ser tão sagrada quanto uma religião para os seus fiéis? Então também elas, as mães, deveriam ficar arredadas do traço pernicioso do lápis dos cartoonistas, já que, - li em vários comentários - religião, porque coisa sagrada, devia ficar fora do seu alcance?! A lista pode crescer, basta querermos, pois não faltarão símbolos queridos para proteger da loucura dos artistas. Vamos depois entregar-lhes a lista dos assuntos permitidos e ficar à espera de cartoons insípidos - o mundo vai tornar-se automaticamente melhor, sem ódios, sem racismo, sem xenofobia, vão ver! A verdade é esta: os cartoons de Charlie Hebdo chocam porque a religião - e não apenas ela - é chocante, o mundo é um lugar de aberrações, só isso.

Charlie são todos os que fazem uso da censura de forma espirituosa e inteligente, ou seja satiricamente, através da escrita ou do cartoon, para tecer ironias contra certas concepções vigentes, aspectos da vida, figuras públicas, organizações, entidades, nações, etc. O humor não precisa estar presente nestas criações, pelo contrário, o quadro até pode ser bem negro, repugnante e não suscitar graça alguma. O que é essencial à sátira é a existência de uma crítica. Detectado o vício e combatido pelo lápis ou pela caneta, podemos intuir o oposto, por regra uma circunstância mais desejável, como se a sátira fosse uma arma de reforma do mundo e ousasse restaurar o bom senso. Não raro constatamos uma caricatura da situação, uma ampliação da realidade onde são exacerbados os defeitos de tal forma que a raiva pode emergir. É a doer que se faz cair a máscara que aparentemente ilude um estado de perfeição. Porque esta máscara é muitas vezes uma máscara de ferro e não é com beijos que se penetra uma tal barreira. O riso desmonta a face do horror que não conseguimos esconjurar de outra maneira. A sátira diminui o nosso sentimento de impotência. Sem ela os nossos medos seriam mais fortes e nós deles eternos prisioneiros.

Indignou-me ler que há quem responsabilize os cartoonistas não só pelo massacre como pela morte de terceiros, uma vez que prosseguiam obstinadamente a sua “agenda pessoal” sem atentar nas consequências. Houve até quem apelidasse Charb de egoísta por ter dito há uns anos atrás: "Não tenho filhos, mulher, cartão de crédito ou carro. Por isso prefiro morrer de pé do que ajoelhado!" Pergunto: e porque não responsabilizar antes o Estado francês que é sabido ter dado uma mãozinha aqui e ali a apoiantes da Jihad, por exemplo, o caso dos agentes que apoiavam o Exército Livre da Síria? Ou quem faz cair bombas que nem chuva nos territórios do Médio Oriente na mira dos seus recursos naturais? Ou quem pode e não faz por melhorar as condições de vida nesses territórios? Ou quem explora a mão-de-obra barata muçulmana e os empurra para subúrbios de miséria?

Charlie são aqueles, poucos, resistentes, que não envergonham o direito à liberdade de expressão. Usar bem este direito não é para fracos. Enxovalhado de alto a baixo pelos media, que se ajoelham perante o poder, - ou os poderes, conforme mais favorável - não o questionando quando e como deviam, subservientes por interesse ou medo - e já agora ...por nós mesmos. Quem é que nunca se auto-censurou, não por respeito ou porque a minha liberdade termina onde começa a do outro, - já pensaram bem nesta ideia, porque é que as liberdades não se comunicam? O porquê de serem estanques não significará ausência de diálogo, de compromisso, de puro individualismo? - mas porque se temem as mais variadas represálias ou porque se acomodaram favores? Que fácil dizer que os cartoonistas tiveram o que mereciam quando eles apenas estavam a fazer o que os cartoonistas têm de fazer. Quer cartoonistas quer extremistas foram fiéis aos seus deuses, a liberdade de expressão, para os primeiros e Maomé, para os segundos. Só que enquanto uns desenham, os outros matam ou/e morrem para servi-los:"Morte ou vitória deverá ser o lema de todo o soldado".Vamos então pedir aos cartoonistas que se abstenham de desenhar o profeta em respeito da liberdade que devemos garantir aos muçulmanos, liberdade de seguir literalmente a palavra sagrada, uma liberdade que inclui intrinsecamente a execução duma sentença de morte!

Este direito é um dos pilares da Democracia, uma conquista civilizacional que nos assegura que possamos expor as nossas ideias livremente e ter acesso a opiniões de sentido contrário. É um garante da vitalidade do pensamento, permite-nos desafiar e ser desafiados, amplia a nossa visão sobre o mundo. Por causa dele podemos navegar na internet e escrever os maiores absurdos, porque sim. Este direito não é válido apenas para grandes ideias ou ideias politicamente correctas. Nós e os cartoonistas podemos chocar ou ser controversos em toda a linha, estamos no nosso direito. Além disso, se já dantes os Estados tinham a obrigação de desmantelar as barreiras à liberdade de expressão, na era da internet quase não existem entraves à circulação das ideias, sejam boas ou ruins. Vocês que acham que os cartoonistas são provocatórios pensem que o vosso comportamento diário - que tanto gozo vos dá publicitar no Facebook - é as mais das vezes uma afronta ao Islão. Já pensaram nisso? Já pensaram que os vossos actos podem, aos olhos dos muçulmanos radicais, ser tão opressivos ou indignos quanto uma caricatura de Maomé? A vossa mini-saia comprada ontem, o vosso carro de luxo à porta de casa, a minha indiferença pelos símbolos religiosos. Já viram como também estão a pedi-las?! Cubram-se e aos vossos pertences com uma burka, vivam na sombra daquilo que vos dá prazer, deixem-se intimidar, acobardem-se. Esqueçam a vossa herança europeia, renunciem a Rousseau e Voltaire – não tarda nada estão a comprar um tapete e a orar cinco vezes por dia voltados para Meca! Pois, boa sorte com o vosso ideário. Eu não, obrigada. Por isso, eu sou Charlie.

Os cartoonistas criticavam o extremismo e a barbárie cometidos em nome do Islão, entre outras áreas quentes da actualidade política, social e religiosa. Que isso possa incomodar os muçulmanos, não duvido. O simples acto de desenhar o profeta já é blasfémia. Mas a nós, o que nos devia estar incomodar o pensamento não é saber se Maomé é um intocável, porque é sagrado, - ou o Papa, ou o Presidente, ou a Amália, ou o Eusébio,- e se os cartoonistas se meteram a jeito. Antes e muito simplesmente se é aceitável que uma minoria de loucos extremistas possa matar em nome do que quer que seja em que acreditam, ironicamente num país onde o direito à liberdade de expressão que permite a actividade dos cartoonistas também permite a difusão dos ideais islâmicos. Não se iluda quem pense que pode haver qualquer espécie de diálogo entre a Europa e estes fanáticos pois até mesmo invocar o direito à vida e dizer-lhes que não matamos quem goza com a nossa cara, que lidamos com isso numa sala de tribunal, não faz qualquer sentido, ansiosos que estão por entrarem no paraíso e desfrutar das 72 virgens prometidas! Resta-nos tratá-los como os criminosos que são, salvaguardando todo o universo muçulmano que repudia esta vertente extremista, e que vão sofrer, injustamente, as consequências deste massacre nos tempos mais próximos.

O que Saramago escreveu, qualquer coisa como, “perguntaram-me como pode um homem sem religião ser bom ao que respondi como pode um homem com religião ser mau”, faz sempre eco na minha cabeça em momentos destes, onde se testa a tolerância, a solidariedade e outros valores da convivência humana, momentos onde procuro e não encontro nem explicações simples, nem soluções complexas, apenas consternação e perplexidade.


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