Televisão: No reservations - quando a TV é mesmo saborosa



Bourdain tornou-se popular após ter escrito Kitchen Confidential em 2000, um best-seller da lista do New York Times, onde ele escreve sobre aspectos menos conhecidos do mundo da culinária, temperando o relato com episódios da vida pessoal e profissional. Eu, que não dou um pé de salsa por obras sobre o tema, nunca descobriria o chef culinário se ele não tivesse dado o salto para a televisão, igualmente com sucesso, apresentando o programa de aventuras culturais e culinárias Anthony Bourdain: No Reservations, no Travel Channel, que é uma espécie de reality show da culinária, ainda que bastante editado e cuidadosamente escrito e filmado. O carismático chef Anthony Bourdain não usa o tradicional barrete branco nem cozinha muito, passa cada episódio a visitar cidades e locais nos Estados Unidos, ou noutro qualquer local do globo, a ser recebido pelos locais, com quem prova o sabor local não só da gastronomia mas também dos diversos ambientes.

A série estreou em 2005 no Travel Channel, e seu formato e conteúdo é semelhante à série do mesmo Bourdain exibida em 2001 e 2002 pela Food Network, de nome A Cook's Tour. Espreitando o IMDB vemos que está bem posicionada. Este ano o American Cinema Editors já atribuíu um Eddie ao episódio Haiti, a que pertence o primeiro dos videos que aqui partilho, o prémio de Best Edited Reality Series. Mas em 2011 o mesmo episódio já tinha sido premiado com um Emmy: Outstanding Cinematography for Nonfiction Programming - e nomeado para Outstanding Picture Editing for Nonfiction Programming e Outstanding Writing for Nonfiction Programming. Por sua vez a série tinha sido nomeada para Outstanding Nonfiction Series. Aqui as nomeações referem-se igualmente aos Emmys. À semelhança de certos vinhos, a série tem, portanto, vindo a melhorar ao longo dos anos e a ser reconhecida.

Devem saber, pelo que de vez em quando aqui escrevo, que eu e a cozinha não somos amigas do peito. Tratamo-nos por tu mas não entramos em relações sofisticadas. Se pudermos manter-nos longe uma da outra não sentimos muitas saudades. Em cima disso eu sou das que come para viver, não vivo para comer. Frequentes vezes dizem-me que tenho estômago de passarinho embora, verdade, me considere um bom garfo por ser curiosa em relação aos sabores e estar sempre disposta a provar um prato novo, em especial se alguém o cozinhar para mim. Por isso, revistas de culinária, livros de culinária ou programas de TV sobre culinária nunca me cativaram por aí além, embora me lembre do chef Silva e das suas receitas... com algum carinho...possivelmente porque já me lembro mal. Até que um dia descobri o Bourdain. A sua série era uma refeição variada de episódios sobre comidinhas dos quatro cantos do mundo, paisagens e recantos,ora sofisticados ora rústicos, notas culturais, e gente. Gente ora simples ora muito senhora da sua arte e do seu nariz, que a produção desencanta e que acaba invariavelmente sentada à mesa, ou não, com Bourdain, a dar à língua e a dar ao dente. Aqui a ali o chef não se coibe de dizer asneiras, aliás o homem faz por dizer o que lhe apetece. Mas, atenção, Bourdain é um personagem. Vejam o making off creio que do episódio na India e perceberão. Não há ali ponto sem nó. Fiquei fã do Bourdain. Só que nem sempre consigo acompanhar a série que se tornou rapidamente um dos meus programas favoritos. Para mim é um exemplo do que a boa TV deve ser: entretenimento, informação, humor, cultura num formato concentrado, simples, e variado, umas vezes doce, outras vezes mais amargo, que sempre nos deixa saciados mas, como diz o chef...hungry for more(famintos por mais).

Há uns Domingos atrás, à noite, enquanto procurava um filmito para desanuviar o espírito, apanhei na SIC Radical este compacto de dois episódios No reservations - o premiado episódio do Haiti e o episódio filmado em Vienna. Andava há muito para escrever sobre a série, inclusivamente estive para o fazer quando Bourdain esteve, há uns meses, em Lisboa, para filmar o seu terceiro No reservations dedicado a Portugal. Mas não estava muito inspirada e o assunto foi ficando em banho maria.

Estes dois episódios em conjunto formaram um admirável painel de contrastes sobre o nosso mundo. Bourdain visitou o Haiti em 2011, depois do sismo que em 2010 terá afectado três milhões de pessoas destruindo milhares de edifícios e comunicações, lançando o caos sobre o território. Se bem se lembram as imagens colhidas do ar à altura mostravam cidades inteiras esmagadas como se Gulliver e a sua família alargada tivesse feito dali o seu recreio. Infelizmente, a qualquer vaga noticiosa segue-se quase sempre um lento esquecimento daquilo que deu à costa na nossa TV e hoje já são raras as imagens que vemos dessa destruição, que permanece, tal a dimensão e a lenta recuperação em curso. A riqueza deste episódio é demasiado notável e receio que escrever sobre o mesmo não expresse a qualidade daquilo a que assisti, mas gostava de conseguir contagiar-vos com o meu entusiasmo, ele pode ser visto no Youtube. Aí encontrarão imagens do que é viver a eminência de um furacão, os coloridos tap-tap, a evocação literária de Graham Greene em virtude do Hotel Oloffson em Port-au-Prince ter inspirado um seu livro, o relato da sobrevivência diária nas ruas, a história da resistência deste povo à adversidade através da arte, da música, dos seus ritos, a sua luta diária para limpar os escombros e manter pequenos negócios de rua, um encontro com Sean Pean que se responsabillizou por um acampamento de 50.000 pessoas, análise política, a confissão de Bourdain de que não aguentaria viver assim...os picklies, e as imagens finais de um mar de tendas azuis, onde actualmente muitos haitianos vivem e viverão por muito tempo. Após o intervalo, cehga-nos o contraste com a limpa e gelada Vienna de Áustria, imagens de abundância, conforto e luxo. Depois de servidas as entradas do episódio, uma alusão cinematográfica ao Terceiro Homem, filme que ainda leva muitos turistas a Vienna, passeamos com Bourdain até aos palácios e belas estátuas semi-cobertas de neve, uma imponente árvore de Natal, encantamo-nos com a pastelaria fina, a visita ao Hotel Sacher, a casa da célebre torta de chocolate, lojas em mercados onde a qualidade é palavra de ordem, muitos e muitos pratos de carne para degustar que convertem Bourdain à terra onde se fala alemão e vivem afamados chefes pasteleiros, uma raça que ele não parece considerar muito. O destaque para uma loja de artigos de caça justifica-se porque ela é um modo de vida mais do que um desporto para os vienenses. Aí, Bourdain prova roupa de qualidade e equipamento para a caça, manuseia espingardas construídas de forma artesanal, lindas peças de morte, e ouve do proprietário a justificação de que um veado, quando é morto, viveu uma vida perfeita, não é como um frango criado em aviário. E por fim, o humor habitual servido na forma de uma salsicha, o "pau de pus", que leva recheio de queijo, e o mais insólito que já vi, um restaurante onde se servem todas as partes da cabra, incluindo o seu anús, um prato de muito difícil saída e que Bourdain teve de engolir, gostasse ou não, entre gracejos sobre o rabo da Angelina Jolie. Inesquecível, aquele pequeno monte de carne em forma de vulcão no centro do enorme prato, a desafiar o nosso entendimento do que a gastronomia pode ser...Sou fã do Bourdain. Percebe-se, certo?

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