Cinema: O caso Farewell, espionagem na guerra fria


Não é fácil estar a par de todo o bom cinema que se faz. L'Affaire Farewell. Nunca tinha ouvido falar deste thriller de espionagem, escapou completamente ao meu radar! 

O caso Farewell é um filme baseado em factos verídicos - veja-se aqui o dossier Farewell e factos sobre Vladimir Vetrov , - e foi realizado por Christian Carion. Emir Kustorica é brilhante como Sergei Grigoriev, um idealista desencantado, um agente da inteligência soviética que decide virar-se contra o seu próprio país, sacrificando-se a bem de uma perestroika. Embora defenda o comunismo, que em 40 anos tirara a Rússia da Idade Média colocando o primeiro homem no espaço, ele o considera um sonho difícil. Depois que o Governo subverteu os interesses da Rússia, e a bem das gerações futuras, da qual o seu filho faz parte, algo tem de ser feito. 

Guillaume Canet é Pierre Froment, - outra grande interpretação - um engenheiro francês a viver em Moscovo nos anos 80, amante das coisas boas da vida, torna-se o seu contacto com o Governo francês e começa a fotografar e a entregar documentos ultra-secretos ao Ocidente, escondendo a sua actividade da mulher e comportando-se gradualmente como um verdadeiro espião. “Casei-me com um engenheiro e não com James Bond”, exclama a mulher de Pierre, querendo dissuadi-lo, quando descobre que o marido se deixou envolver numa arriscada trama de espionagem. Com uma intensa serenidade mas plena de tensão latente, a vida de pessoas normais corre diante dos nossos olhos, enquanto, na sombra, se desenrolam factos extraordinários. 

Exatamente ao contrário dos filmes de James Bond onde tudo é excessivo e acrobático, aqui, o espião aprendiz e o mestre, mostram-nos uma aprendizagem que é natural e subtil, humana, feita de encontros no parque e trocas de champagne, livros de poesia e cassetes dos Queen e Ferré, sem tecnologia de ponta à excepção de umas pequenas cameras fotográficas da CIA que a dado momento saltam dos bolsos de Pierre. Sem espalhafato, sem grandes esquemas, conhecemos a última jogada do mestre analista da KGB urdida num sufocado medo e na melancolia. Assistimos aos conflitos emocionais das personagens, cada uma consumida pela sua dose de segredos, pela sua vida dupla, - "aprende-se depressa a mentir" - e já sabemos que tudo culminará no sacrifício: para os lobinhos sobreviverem o pai lobo terá de morrer. Os documentos acabam nas mãos de Midterrand e Ronald Reagan, os primeiros são documentos científicos como os planos da construção do vai-vém espacial norte-americano, mas depois chegam os mapas da segurança americana, bem demonstrativos do nível de informação detido pela KGB à altura. Mais tarde Grigoriev entrega os nomes dos homens que compõem a rede de espiões russos nos EUA e na Europa, a Lista X, cujo desmantelamento será decisivo na viragem da história da guerra fria. 

Quando o filme chega ao fim brinda-nos com uma das mais tensas e extraordinárias fugas que tenho memória, sem nunca, no entanto, contrariar o seu ritmo, surpreendendo-nos ainda, quando pensávamos que já tudo estava decidido. Banda sonora impecável, excelente reconstituição histórica, e grandes momentos de cinema numa fita completamente insuspeita, é isto mesmo que eu gosto: ser surpreendida.

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