Primavera, Verão, Outono, Inverno...e Primavera. Um filme de Kim Ki-Duk




Ontem assisti a Primavera, Verão, Outono, Inverno. É um filme contemplativo, austero, que se desenvolve de forma lenta, levando-nos a refletir sobre o círculo da vida, suas lições e aprendizagens. Simplesmente complexo e belo, exactamente como a Natureza nas suas quatro estações. O realizador sul coreano Kim Ki-Duk pratica um cinema de autor, marginal, com uma visão peculiaríssima - onde a linguagem não verbal ganha enorme preponderância, assim como a violência. Aclamado por júris de festivais e, por vezes, também pelo público, algum público que o prefere a outros mais mainstream, o “realizador dos anzóis” criou um dos filmes mais violentos que já vi, ou, pelo menos, um dos poucos que me recordo forçar-me a desviar os olhos e contorcer-me na cadeira. Não sou muito impressionável mas esse filme contém situações de uma violência crua e cruel que levaram críticos dos Festivais de Nova Iorque, Veneza e Sundance a caírem para o lado: não sou eu a dizer, era assim se lia na ocasião da estreia! Por muito teatral e mais próprio de damas antigas apertadas em corpetes asfixiantes nos salões da alta sociedade do que de gente habituada às andanças das salas de cinema, acho até perfeitamente natural perante a sequência de cenas de mutilação, crueldade diversa para com animais, uma relação sado-masoquista entre uma mulher muda e um ex-criminoso, penso que um polícia, e outros requintes de que já não me recordo. Refiro-me ao filme O bordel do lago. Realizador cativante plasticamente mas controverso e polémico também, esqueci-me de o dizer, desde o início da sua carreira. A mestria técnica, plástica e visual que se encontra no Primavera, Verão, Outono, Inverno, Primavera é a mesma que se encontra no filme que vi há meia dúzia de anos. Portanto, cuidado a quem tenha visto este, apreciado a beleza e a reflexão, e que inadvertidamente comece a percorrer a cinematografia de Kim porque o homem é um poeta e um demónio. 

Essa mestria é apenas um ponto de contacto entre os dois filmes, existem outros, como o uso do silêncio, sempre repleto de significado, ou de simbologias diversas que exigem a nossa interpretação. O próprio cenário é muito semelhante: um lago cercado de montanhas, névoas, barcos, cabanas flutuantes, - aqui um mosteiro flutuante - assim como é semelhante a quase ausência de diálogos ou a presença de um fugitivo que busca refúgio no lago isolado. A violência está presente neste Primavera, Verão, Outono, Inverno, mas de longe menos encenada ou menos construída. Impossível dizer que são maus filmes por causa da tal violência que o cineasta usa quase como marca, muito longe disso. É preciso termos o distanciamento suficiente para não negar o talento de Kim Ki-Duk ao sermos presas da violência de carácter explícito, por vezes até obscena. Mas também não devemos recear apontar o seu uso excessivo ou desnecessário para contar  a sua história quando o entendermos, devemos ser cinéfilos críticos, exigentes. Uma coisa é certa: na sua obra o excesso é evidente e alguns dos seus filmes não circulam comercialmente com facilidade sendo apenas exibidos no circuito dos filmes de horror e festivais do género.

Concluo afirmando que os dois filmes são boas experiências cinematográficas, este mais meditativo e sereno, e capaz de chegar a mais vasto público. Deixemos assentar o deslumbramento visual ou o atordoamento mental ou o desassossego do estômago, a violência entranhada, no primeiro caso, e a simplicidade tão poética e extremada, no segundo e examinemos depois tão objectivamente quanto for possível o que acabámos de experimentar. Este filme das quatro estações, de narrativa linear (e circular) remete para reflexões profundas que talvez apenas os instruídos na filosofia e princípios budistas conseguirão alcançar em pleno. Mas independentemente de crenças religiosas que possamos ter, ou saber,  o filme procura captar e transmitir algo que é comum à essência da humanidade, ilustrando a sinuosa caminhada dos seres na sua busca de perfeição e equilíbrio, e é uma experiência cinematográfica maravilhosa que está ao alcance dos nossos sentidos, mais até do que da nossa mente.

Encontrei na internet dois cartazes do filme. O da direita é o meu favorito e representa o resultado da cena do entalhamento de caracteres pelo revoltado fugitivo, caracteres escritos "a gato" no chão da cabana-templo, sim, escritos pelo mestre usando o rabo de um gato branco mergulhado em tinta, gato que ele carrega consigo ao longo de todo o processo. De alguma forma lembrei-me que o cineasta nunca estudou cinema, estudou pintura pois queria pintar a feiura e o mal que havia no mundo. 

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