O tsunami asiático de 26 DE DEZEMBRO DE 2004



Ontem à noite quando liguei a TV estavam a dar na SIC um filme - Tsunami, the aftermath -inspirado pela catastrófe do dia 26 de Dezembro de 2004, o tsunami asiático. Eu esperava pelo egocêntrico Dr. House e fui vendo um pouco do filme até que descobri que iam repetir episódios passados nem há um mês e recolhi a vale de lençóis entre bocejos e impropérios contra a incompetência da TVI. Este ano reconciliei-me vagamente com a TV, caixa que desde 2000 reduzira ao mais insignificante electrodoméstico, através de duas séries: 24 e House MD. No último caso não deixo de me surpreender duplamente pois sempre menosprezei séries sobre médicos, enfermeiras e gente ensanguentada, entubada ou com as vísceras à mostra tipo Emergency Room ou outras. Não que seja particularmente impressionável mas o tema nunca me cativou. E de repente topo com esta e não desligo. 

O filme sobre o Tsunami tinha-me feito lembrar as imagens, essas sim, impressionantes, que vira há dois anos: destroços e mais destroços, gente acampada na rua, coberta por cobertores, ou esticada ao relento. Eram os mais felizes dos infelizes, poupados à morte mas atirados para uma luta de sobrevivência diária que se iria prolongar, desgraçadamente, por muito tempo. Lembro-me de saltar dos nossos flashs noticiosos para os da BBC para tentar perceber o que sucedera. Aprendi a palavra tsunami nos filmes animados do Conan. Nunca mais me esqueci da onda que vi no filme de animação há 20 anos. O meu cérebro fazia sempre o download dessa imagem da minha memória quando a palavra maremoto vinha à tona. Em 2004 a memória foi tristemente actualizada. Difícil aceitar factos como tribos inteiras arrastadas para o mar, aldeias completamente destruídas, uma geração de crianças perdida na voragem das águas, quilómetros de costa transformados em cemitérios, a urgência de congeladores para cadáveres. Dia 26 estava eu ocupada pelo meu trabalho e bastante engripada. Cheguei a casa e enfiei-me na cama. Só ao outro dia, e nos seguintes, comecei a perceber o que tinha acontecido, os números de mortos a subir a cada edição de jornal, as fotografias inumanas. Uma semana depois já estava demasiado elucidada e mesmo assim não o suficiente. Apesar das imagens da tragédia a devastação era tão grande que não conseguia ter uma percepção exacta dela, ou era o meu cérebro que se recusava a processar o conhecimento sobre tão grande tragédia. Sempre achei que as fotografias são mais exactas do que imagens em filme quando nos queremos aperceber da realidade. Ainda há dias veio parar à minha caixa de email uma aplicação Powerpoint com fotos sobre o 11 de Setembro que confirma esta minha ideia. Mesmo depois de ter visto e revisto o que a TV passou sobre o 11 de Setembro este conjunto de fotos conseguiu ser muito mais preciso e impressionante. À semelhança do sucedido na Ásia também a queda das duas torres deu origem a material fílmico que eu deliberadamente evitei, United 93 e World Trade Center. Para mim é demasiado ser contemporânea dos acontecimentos e revê-los depois naquele formato. Dispenso mais um ponto de vista de terceiros por muito virtuoso ou excelente que seja, fico-me pelo relato jornalístico e documental. Se os trágicos acontecimentos que me envolveram apenas como espectadora desprevenida me abalam ao ponto de encontrar em mim esta recusa pergunto-me como reagirão as pessoas directamente envolvidas e que têm de conviver com esta memória. A verdade é que sem termo de comparação não conseguimos nem chegar perto do que possam sentir. O que é, como é viver o horror, o medo? 

Em 2001 as zonas alagadas pelas águas do Mondego no concelho de Montemor-o-Velho invadiram os televisores portugueses. A subida das águas do rio causou aqui enormes estragos materiais mas não engoliu vidas humanas. Arruinou pequenos comércios, destruiu estradas e ponte. Pese embora a elevação rápida do nível da água que apanhou a população de surpresa a resposta foi pronta e permitiu evitar o pior. Mas às perdas previsíveis, relativamente contabilizáveis e moderadamente vultuosas, juntou-se a incapacidade de reparação por parte das instituições de molde satisfatório. Um ano depois, dois, três ainda surgiam nos jornais vozes isoladas a reclamarem por essa reparação. Um sábado de manhã nesse mês de Fevereiro, resolvi ir a Coimbra. Não conduzia ainda pelo que fui de comboio. A viagem parou a meio. A linha férrea encontrava-se interrompida pela água. Daí em diante uma viagem de uma hora transformou-se em três longas horas de nervos miúdos. Uma passageira e eu chamámos um táxi: eu tinha uma reunião, ela queria ir ao hospital. Todos os trajectos tomados estavam também impedidos pela água- não tinha sido só a linha férrea que ficara cortada. Depois de meia dúzia de quilómetros o taxista invertia a marcha e tentava outro caminho, uma, duas, três vezes. O condutor conhecia muito bem as estradas, mesmo as estradas do campo, e tentou todas as possibilidades antes de não ter outra solução senão voltar para trás e apanhar a estrada principal. Antes o tivéssemos feito logo que entrámos para o veículo em Alfarelos. A dado momento recordo o carro no meio do enorme campo muito plano e dividido por estradas paralelas aqui e ali submersas. No táxi de vidros embaciados eu limpava com a mão a vidraça do meu lado esquerdo para inspeccionar à minha volta. A água corria, marulhando incessantemente. Era um enorme lençol de cor leitosa, ondulante, que corria todo na mesma direcção, da direita para a esquerda. Atravessava a estrada que tentávamos percorrer e chegava sem dúvida ao nível das portas do táxi o que me deixava bastante preocupada. À minha esquerda, à minha direita, à minha frente, atrás de mim, as terras estavam cobertas de água. O taxista insistia em avançar e eu não percebia como é que ele tinha a percepção da profundidade da água. O troço da estrada adivinhava-se através de tufos intermitentes de arbustos ora da direita, ora da esquerda. Sabendo que ele devia conhecer o carro que conduzia não deixava de perguntar uma ou duas vezes: - Ouça lá, tem a certeza de que o motor não se vai afogar? Ele dizia que não, que aquilo era uma máquina, o que me deixava igualmente intranquila. Atrás de nós, talvez a nem 500 metros, suspeitava eu de águas sustidas por frágeis barreiras em jeito de dique, num plano mais elevado. Nem queria imaginar que aquilo cedesse e elas galgassem o desnível. Se começassem a correr na nossa direcção o carro seria arrastado. Pensei nisso. Estar ali no meio daquele mar-chão de ondulação miúda e barrenta transmitia-me uma inquietação enorme. Não chovia mas a atmosfera estava muito húmida e pesada, os céus fechados de nuvens cinza-névoa. Finalmente o taxista deixou de lutar contra a sua própria teimosia. Eu respirei de alívio. Chegámos a Coimbra três horas depois do previsto. 

Sirvo-me da minha pequena e inconsequente experiência para tentar perceber algo do que possa ter sido o horror de ser apanhado por uma massa de água em fúria apesar de nem sequer ter molhado o dedo pequeno do pé naquelas águas barrentas dos campos de arroz de Montemor-o-Velho. Ensaio multiplicar a sensação por cem, por mil, mas nem assim. É nesta distância de proporções que se situa a minha percepção do Tsunami asiático. Nesta distância e no meu lugar de espectadora bem aconchegada no meu sofá, de controlo remoto na mão, de camisola quente e seca, em frente ao aparelho de TV. Que sorte que eu tenho.

Comentários

Capitão-Mor disse…
Embora em proporções bem distintas, as cheias que muitas vezes assolam essa área de Montemor-o-Velho e o Ribatejo têm efeitos catastróficos. No entanto, convém não esquecer que já fomos vítimas de um tsunami em 1755...